The Pothead Blues

poesia beatnik e pensamentos nihilistas

02 outubro 2008

there's a place where the strange ones go

estender as roupas no varal é um dos afazeres mais sucks que cabem ao homem moderno. só não é pior do que passar roupa. aliás, eu já deixei quieto esse troço de passar roupa há bom tempo - mais precisamente, desde que, num breve sartori, percebi que um poeta beat não se mede pelas roupas bem passadas que porventura vista. essa singela iluminação foi fundamental para que eu atingisse um grau mais elevado em minha vida. e em minha poesia, que ambas se confudem. mas a decisão de não mais passar roupas aumentou a importância daquele gesto anterior, gesto ao qual me referia, o de estender as roupas no varal.
pois estava eu lá, a estender meus andrajos recém-lavados no varal hipster quando se sucedeu um acidente comezinho, que poderia passar despercebido no rol dos acidentes domésticos, mas que falou à minha atenção poética e avivou a maquininha de epifanias que habita este narrador.
há questão de um par de semanas, desenvolvi uma nova técnica de pendurar roupas no varal. em vez de estender as camisas na vertical, na posição em que as envergamos naturalmente no dia-a-dia, na posição em que nos acostumamos a vê-las, ou seja, com a gola para cima, dei para estendê-las no sentido oposto, de baixo pra cima, de ponta-cabeça.
mais do que dotar meu varal de um estilo visual peculiar, tornando-o uma espécie de instalação pós-moderna, quase um penetrável, essa nova maneira de se pendurar roupas revelou-se de uma felicidade intensa.
pois toda a boa arte é também uma arte funcional. ao virar as camisas de ponta-cabeça, os pregadores de roupa são colocados na ponta de baixo do tecido, em vez de na ponta de cima, nos ombros da camisa, próximos às mangas. como eu não passo mais minhas roupas, já o disse, essa nova localização dos pregadores foi de uma ensolarada felicidade: as marcas dos pregadores não ficam mais em meus ombros, o tecido repuxado, quando visto a camisa... percebes?
bueno, isso pra te dizer que meus pregadores de roupa são vagabundos. daqueles que saem por 1,99 o pacote com trinta, quarenta. por uma dessas idiossincrasias industriais, comuns na larga produção, o meu pacote veio com todos os pregadores verde-oliva - exceto um único pregador, de coloração acinzentada. de noite, no escuro, tu não percebes a diferença. mas no sol matinal d´aclimação, sob o qual costumo pendurar as roupas e usar os pregadores, fica evidente essa distinção de cor. esse único pregador cinza num cestinho de pregadores verdes, eu apelidei, carinhosa e ironicamente, de mandela. era evidente sua solidão, naquele apartheid de plástico.
pois hoje de manhã, há pouco mais de uma hora, mandela não aguentou mais tamanha solidão. mandela se aproveitou de meu descuido quando eu virava uma camisa de ponta-cabeça no varal, posição que requer mais atenção e mais controle motor daquele que estende as roupas. mandela aproveitou e escapuliu-se de minha mão esquerda (a irmã mais lerda da destra) e se atirou da janela. caiu do décimo-sexto andar do the double tree park. a esta hora, os restos mortais do melancólico mandela, o solitário pregador cinza de vida breve, já devem ter sido varridos da calçada pelo diligente joão baptista, completamente alheio à triste desventura que ali encontrou seu trágico e inesperado desfecho.

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