The Pothead Blues

poesia beatnik e pensamentos nihilistas

12 janeiro 2009

blecaute suburbano

logo ali adiante, no supermercado dany, tem uma guria muito charmosa. aquela guria que ocupa a caixa número dois entre oito da manhã e duas da tarde. as funcionárias do dany usam um terninho azul e uma blusinha xadrez coloridinha, tipo uniforme, tosco. para evitar os decotes de verão. mas elas não usam crachá no peito, e essa deve ser uma norma da casa para que bebuns e maloqueiros d´aclimação (público-alvo do mercado) não se engracem em demaisia para cima das moças trabalhadeiras.
te digo que a guria do caixa número dois prescinde de crachá. tem brilho próprio. charme, sensualidade. fineza.
sempre passo minhas compras no caixa dela. ela sorri e dá bom dia. vinte e poucos anos. mignon, cabelo diligentemente preso num coque. pouca maquiagem, esmalte vermelho nos dedos ágeis. mãos pequenas, a cintura fina, o peitinho pequeno, um par de covinhas na face. tua pele morena, um olhar penetrante.
eu sorrio e improviso o cumprimento. como estás?, devolvo, com elegância. ela sorri de volta. pergunta se eu gostaria de receber uma nota fiscal paulista pelas compras. não, não precisa, repito a negativa a cada vez - e a cada vez me arrependo por perder a chance de dar a ela meu cpf (onze números) e assim encompridar nosso diálogo por um momento que seja.
porque como eu digo que não preciso de nota fiscal, não passo o cpf e ela então desfaz o sorriso, baixa os olhos e começa a passar as compras, uma a uma, pelo leitor automático de códigos de barra. a máquina empresta frieza e profissionalismo ao contato. rapidinho, ela já passou tudo e, ligeira e competente como a tal máquina, a guria me canta o valor da féria do dia. vinte e três reais e cinquenta e sete centavos.
passo as mãos pelos vários bolsos da bermuda. atrás de minha carteira. começo a suar frio nessa hora. quando, enfim, alcanço a carteira, a guria já está com o olhar perdido num ponto vazio. eu conto as notas em minhas mãos trêmulas, está próxima a despedida, eu sei, e passo as notas para a moça.
tem sessenta centavos?, ela pergunta, graciosa, será que teria segundas intenções nessa prosaica pergunta? gostaria de saber interpretar melhor as mulheres. como charlie harper. nunca soube. deve ter uma segunda intenção nessa interrogação, deve ser uma ponte para eu dizer alguma coisa, improvisar, quem sabe arriscar e convidá-la no mais para um chope ali no nova era logo mais à tardinha. what would charlie harper do?
eu apenas sorrio amarelo, apenas sorrio sem graça, envergonhado pela oportunidade perdida, e digo a ela, gagaguejante, que eu não uso cacarregar monedas na bebermuda. que elas me pesam o caminhar.
me distraem com seu tilintar. desculpe o mal jeito, guria.
uma garota morena, suburbana de gestos elegantes e graça natural, herdeira da nobreza proletária de alguma vila longínqua da zona leste, zona norte, zona sul. ela abre o caixa num clingue, contas as moedas do troco, me entrega um par de notas amassadas e uns cobres fajutos que tilintarão nos vários bolsos da bermuda. brigado, ainda me lembro de dizer. brigada você, ela sempre completa, nunca se esquece, num brilho de olho que talvez espere - a cada dia - eu devolver a ela uma poesia feeérica e luminosa como inesperado e romântico resultante de nossa transação tão banal.
o empacotador, sujeito sem poesia, ex-interno da febem, da fundação casa, a esta hora, já está a me alcançar o resultado de minha compra. são as mercadorias embaladas em sacos plásticos antiecológicos. eu agradeço a ele pela presteza do serviço. não ouço a resposta que me chega em outra língua qualquer. atravesso a josé getúlio e vou tomar um cafezinho na padaria madame.

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